“O Concílio Plenário e os momentos sinodais não são apenas sobre propostas aprovadas. O Concílio Plenário é parte do movimento sinodal que a Igreja deve levar adiante. E essa estrutura sinodal é o que levará a Igreja adiante”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor na Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 26-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Você não precisa de uma máquina do tempo para entender o drama do Concílio Vaticano II, que ocorreu entre 1962 a 1965. Para entender, basta olhar o que aconteceu de 03 a 09 de julho de 2022 em Sydney, na segunda assembleia do Quinto Concílio Plenário para a Austrália.
Esse foi o primeiro concílio plenário para católicos “down under” (“lá de baixo”, ou, os australianos) em 80 anos e uma das mais importantes experiências eclesiais para a visão de Igreja sinodal do Papa Francisco.
Infelizmente, eu não poderia estar na Austrália para esse grande evento. Mas através das contas de mídia e minhas conversas com participantes que estiveram na sala, eu posso dizer – como um historiador da Igreja e teólogo interessado em sinodalidade – esse foi um evento verdadeiramente histórico.
Eu fiz quatro visitas à Austrália em função da Igreja desde 2016 e trabalhei como assessor externo para a força-tarefa que rascunhou o documento “Light of the Southern Cross” (“A Luz do Cruzeiro do Sul”), um dos relatórios com a propostas para o Concílio Plenário.
Apesar da lacuna inegável entre algumas das propostas de “Light of the Southern Cross” e os documentos finais do Concílio Plenário, eu posso honestamente dizer que eu não estou desapontado com o que aconteceu no início deste mês em Sydney.
Uma maneira de olhar para o Quinto Concílio Plenário é considerar o que ele alcançou em comparação com as expectativas e as necessidades da Igreja Católica na Austrália e da sociedade australiana.
Outra maneira de ver isso é o que o Concílio Plenário pode ensinar ao “processo sinodal” que o papa lançou.
Isso ainda está se desenrolando em alguns países e culminará com a assembleia internacional do Sínodo dos Bispos em outubro de 2023 em Roma. E certamente o processo sinodal continuará mesmo depois disso.
Eu acho que há seis lições importantes para outras Igrejas que estão preparando suas reuniões sinodais ao redor do mundo. Eles são os Seis P's.
→ Preparação;
→ Pessoas;
→ Procedimento;
→ Polarização;
→ Pray (Oração); e
→ Processo pós-plenário.
O Quinto Concílio Plenário levou muito tempo para imaginar, propor, organizar, preparar e celebrar. Também levará tempo para absorvê-lo.
As primeiras ideias sobre um Concílio Plenário para a Austrália remontam a um tempo antes mesmo de Francisco ser eleito papa; um dos proponentes era o então arcebispo de Adelaide, dom Philip Wilson, há mais de dez anos, quando a sinodalidade não era exatamente popular com o estabelecimento eclesiástico ou no Vaticano.
As propostas de um Concílio Plenário não apenas sobreviveram, mas foram fortalecidas pela tempestade da Comissão Real sobre o escândalo dos abusos na Igreja.
Foi necessária grande parte da energia do então presidente da Conferência Episcopal Australiana, dom Mark Coleridge, para superar a resistência e a oposição e anunciar o Concílio Plenário em 2018.
Após um longo processo de preparação nas igrejas locais, a primeira assembleia aconteceu de 3 a 10 de outubro de 2021.
Ouvi dizer que a segunda montagem em si foi cansativa, mas a preparação mais ainda. Nas duas semanas anteriores à assembleia, a comissão de redação se reunia quase a cada dois dias para considerar as emendas, e cada uma dessas reuniões durava várias horas.
A comissão de redação havia se reunido meses antes da celebração da segunda assembleia: na verdade, desde janeiro. O comitê de direção se reunia constantemente.
A sinodalidade é ouvir o Espírito Santo, mas é preciso muito trabalho para tornar essa escuta possível e uma colaboração paciente entre os diferentes membros da igreja: os teólogos foram uma parte insubstituível do sucesso.
O Concílio Plenário deve muito aos teólogos australianos que trabalharam incansavelmente e com generosidade.
O Concílio Plenário da Austrália foi uma experiência de menos de 300 delegados representando todo o Povo de Deus de uma forma mais plena e rica do que o conceito de representação política.
Christopher Lamb, do The Tablet, que participou da segunda assembleia na Austrália, observou que uma nova liderança surgiu durante o processo sinodal.
O bispo Tim Costelloe, o presidente recém-eleito da conferência dos bispos e presidente do Concílio Plenário, ficou fora de ação durante a maior parte da semana, aparentemente devido aos efeitos persistentes da covid-19. Ele ficou confinado no seu quarto de hotel, mas isso não impediu o Concílio.
O bispo Shane Mackinlay, da Diocese de Sandhurst (Bendigo), seu vice, mostrou atenção aos detalhes dos rascunhos e do funcionamento do Concílio. Ele habilmente ajudou a resgatar a assembleia de uma crise em 6 de julho, quando foi interrompida por uma votação sobre o papel das mulheres.
Mas na verdade foram as pessoas na assembleia que salvaram o Concílio Plenário. A ideia de dividir em pequenos grupos foi muito inteligente.
A atividade de “conversação espiritual”, que ocupou grande parte do dia, promoveu um compartilhamento profundo. A compreensão das pessoas sobre certas questões também mudou ao longo da semana.
Semelhante ao que aconteceu no Vaticano II, as pessoas do Concílio não eram apenas os bispos e membros votantes.
Houve uma presença global e ecumênica de observadores: os cardeais de Mianmar (Charles Bo) e da Nova Zelândia (John Dew), o núncio papal (o arcebispo Charles Balvo) e o presidente do Concílio Australiano de Igrejas.
Os periti ou conselheiros teológicos foram autorizados a sentar-se atrás dos observadores. Além disso, as pessoas do Concílio Plenário também foram as que ofereceram uma voz crítica que manteve o processo honesto.
Havia grupos de católicos preocupados ativos nas mídias sociais, as entradas diárias de blogs de católicos proeminentes e vozes pensativas nos meios de comunicação de massa. Este foi um componente crítico de uma forma positiva.
À semelhança do que aconteceu durante a primeira sessão do Concílio Vaticano II, houve um momento de crise no Concílio Plenário em que simplesmente ir pelo livro não funcionava.
A grande maioria dos bispos do Vaticano II – mas um pouco menos do que os dois terços exigidos – votou em 20 de novembro de 1962 para descartar o projeto de texto sobre a revelação, De fontibus revelationis.
Uma interpretação literal das regras teria permitido ao Concílio continuar as discussões sobre um documento rejeitado por uma grande maioria.
Mas João XXIII decidiu intervir ao ver a ideia do Concílio. Assim, ele pôs de lado De fontibus revelationis para o deleite, entre outros, de um jovem Joseph Ratzinger. A decisão do Papa João abriu o caminho para o que se tornaria a constituição Dei Verbum.
Sessenta anos depois, no Quinto Concílio Plenário da Austrália, a interrupção em 6 de julho foi sobre a votação deliberativa da “Parte 4: Testemunhando a Igualdade de Dignidade de Mulheres e Homens”.
A moção falhou porque não foi apoiada pela maioria exigida de dois terços dos bispos. Foi um momento imensamente doloroso.
A resposta na sala foi imediata; era pouco antes da hora do intervalo matinal, e a votação ocasionou profunda tristeza, consternação e lágrimas.
Há pouca história no catolicismo desse tipo de “insurgência” liderada por leigos (principalmente). Mas algo semelhante aconteceu no Vaticano II. Dom Coleridge (que conhece muito bem a história conciliar) percebeu o que estava acontecendo e em entrevistas posteriores citou a crise de novembro de 1962.
Dom Mackinlay, vice-presidente do Cincílio Plenário, viu que o programa não poderia continuar como estava. Depois do intervalo matinal, cerca de 60 pessoas (a maioria mulheres, dois bispos, alguns padres e leigos) se posicionaram no fundo do salão como forma de protesto.
Dom Mackinlay anunciou que o programa seria revisado e que haveria mais discussão sobre a Parte 4. Ele disse que os bispos se reuniriam com o Comitê Diretor durante o almoço para discutir um caminho a seguir.
A parte 4 do documento foi então revisada por uma nova equipe de redação com uma pequena revisão, sem usar a linguagem da “complementaridade”. Ele foi reintroduzido na assembleia na sexta-feira e ganhou um apoio muito forte.
Deve-se dar crédito à boa vontade de muitos dos bispos que buscavam um caminho. Havia uma estratégia definida planejada desde o início por um grupo conservador para parar todos os movimentos criativos, mas não funcionou.
Como aconteceu no Vaticano II, a estratégia de dizer não a tudo que desafia o status quo não funciona em assembleias eclesiais bem preparadas e bem conduzidas. O procedimento na Austrália funcionou e conseguiu superar a crise.
Ainda assim, há a necessidade de refletir teológica e canonicamente sobre as distinções entre consultivo/deliberativo e elaborar/tomar decisões.
Isso é algo muito importante para a comissão teológica da assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023, que tem uma reunião muito importante em Roma em setembro próximo.
Encontrar uma maneira de superar a explosão após o voto deliberativo negativo dos bispos sobre as mulheres mostrou que é necessário mais um passo de recepção por toda a assembleia após o voto deliberativo.
Em uma Igreja sinodal, a consulta e a deliberação devem ser entendidas como uma relação circular.
O verdadeiro desafio da sinodalidade é superar a polarização eclesial ocasionada por minúsculas minorias conservadoras sem alimentá-la.
É bem conhecido, por exemplo, o que o clérigo mais influente da Austrália na era pós-Vaticano II, o cardeal George Pell, pensou sobre o Concílio Plenário durante a última década
Mas reagir a isso a partir do que eu chamaria de uma postura “esquerdista” ingênua apenas alimenta a polarização e a divisão da Igreja e dificulta o movimento de avanço que o Concílio Plenário conseguiu de maneira significativa.
Aqueles que escreveram com desgosto sobre “o catolicismo woke do Concílio Plenário” mostram como estão desapontados que o Quinto Concílio Plenário tenha se desenvolvido em um espírito eclesial, capaz de superar o jogo e a ideologia da política da Igreja.
A sinodalidade é o caminho para derrotar a polarização na Igreja: não apenas porque mostra, no cenário físico e litúrgico, o real tamanho e importância de pequenas mas barulhentas minorias, mas também porque ajuda a refletir de maneira eclesial e não reativa sobre as questões que essas minorias vocais levantam.
Nos primeiros dias de preparação, o Comitê Executivo dos bispos enfatizou a importância vital da oração. E isso tem sido constantemente motivado.
A estrutura diária do Concílio Plenário incluía momentos de oração na sala de assembleia, e sobre os vários temas havia “conversas espirituais” onde as pessoas compartilhavam o que o Espírito lhes dizia.
A atmosfera de oração exclui qualquer chance de reclamações e raivas. O diálogo sinodal não deve ser como um debate parlamentar – o vencedor leva tudo.
Alguém pode dizer que os resultados finais são brandos, mas eu não vejo desta forma.
A assembleia reivindicou pela volta da Terceira Forma do Rito Penitencial e a revisão da atual tradução inglesa do Missal Romano. Também afirmou a igualdade de mulheres e clamou que elas sejam nomeadas para órgãos de lideranças.
E as moções relacionadas aos povos indígenas e a mudança climática são sinais ainda mais positivos.
Mas o Concílio Plenário e os momentos sinodais não são apenas sobre propostas aprovadas. O Concílio Plenário é parte do movimento sinodal que a Igreja deve levar adiante. E essa estrutura sinodal é o que levará a Igreja adiante.
Talvez, olhando para a Austrália, a Igreja tenha visto neste caso as limitações de uma estrutura de Concílio Plenário porque é dificultada por uma abordagem legal e pode não servir melhor ao discernimento comunitário.
O uso de sínodos por Francisco (no nível local, nacional e universal) parece uma opção melhor. Mas ele não poderá ignorar o que aconteceu na Austrália (e na Alemanha).
Geraldine Doogue, a notável analista de assuntos da Igreja na Austrália, disse que o Concílio Plenário fez “progressos” aos seus olhos.
“Sempre tive uma avaliação bastante contundente do sucesso do Concílio Plenário, em meio à minha Igreja um tanto desmoralizada”, escreveu no jornal The Australian.
“Acho que o veredicto está dado”, concluiu Doogue.
Tão importante quanto as deliberações finais deste evento eclesial será o processo de sua recepção.
O Quinto Concílio Plenário da Austrália terá que ser estudado historicamente. Julgá-lo muito rapidamente como um sucesso ou fracasso com base no que produziu seria uma minimização materialista de um evento eclesial que era impensável apenas dez anos atrás.
Depois que a quarta e última sessão do Vaticano II foi concluída em 8 de dezembro de 1965, muitos bispos e conselheiros teológicos importantes no Concílio disseram que era apenas o começo de um começo (por exemplo, Karl Rahner), e que o Vaticano II estava prestes a começar (Bernard Häring).
Isso vale também para o que aconteceu na Austrália nos últimos anos e culminou na assembleia de Sydney em julho de 2022. O Quinto Concílio Plenário terminou, mas em certo sentido começa agora.